domingo, 3 de fevereiro de 2013

Última chance.

Roberto viu o sol se por na estrada à sua frente, enquanto acelerava rumo ao horizonte. Dali a pouco viu luzes à beira da rodovia. Uma pousadinha o esperava. "Pousada Última Chance", dizia o letreiro por debaixo do qual passou pra entrar no estacionamento, com uma pequena placa logo abaixo onde se lia "Não há vagas". "Perfeito" pensou, coçando a barba por fazer. "Uma noite no carro antes de encarar o desconhecido". Saiu do automóvel e viu, à luz tênue do crepúsculo, que na estrada, logo depois da entrada da pousada, estava a costumeira placa bicolor que indicava a divisa de país. Tirou os óculos do rosto e limpou-os para ler. Na parte de cima lia-se o nome de sua pátria, em fundo verde, e abaixo, na parte amarela, onde deveria estar o nome do país vizinho, não havia letra alguma. Passada a placa, era como se uma entidade superior houvesse traçado uma linha reta entre as nações. Do lado de cá, grama baixa e seca devido à estação. Do lado de lá, um chão escuro, de material indistinguível, e coisa alguma à vista até o horizonte. Roberto teve um súbito arrepio, uma hesitação momentânea, logo suplantada pelo cansaço e pela obstinação. Dirigiu-se à porta da estalagem.

domingo, 29 de abril de 2012

Pipoca.

O pipoqueiro está em sua esquina de costume, apoiado em seu carrinho, sorrindo ao observar as brincadeiras das crianças na praça. Um homem cabisbaixo se aproxima, levantando seu olhar rapidamente para direcioná-lo ao pipoqueiro, para pedir um saco de pipoca doce. Naquele relance, o pipoqueiro compreende. Enquanto enche um saquinho de papel com pipoca doce, sente um calor passar de sua mão para a colher de pipoca. Ele não toca na própria mercadoria (é um profissional), mas, se tocasse, provavelmente sentiria nos flocos brancos um calor curioso, diferente daquele providenciado pelo fogo.. O estranho pega o saco, paga e se afasta, petiscando a guloseima sem muita vontade.
Antes que ande até a esquina, seu celular toca. Ele olha para o visor atônito, sem acreditar no nome que lê. Então atende, gaguejante:
"A-alô? Oi, amor! Quê! Se eu te desculpo? Falou sem pensar? Confia em mim agora? Claro que eu te aceito de volta, meu amor! Esse é o dia mais feliz da minha vida! Sim, estou aqui perto, estou indo praí." E sai correndo, o saquinho esquecido na mão espalhando seu conteúdo pelo chão, pra alegria dos pombos da cidade.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Poderia ser você.

Uma rua tomada pela neblina, mal-iluminada por postes de luz elétrica. Debaixo de um desses aguarda um homem, que olha pros lados como quem espera que algo aconteça. Enverga um longo casaco e tem as mãos nos bolsos. Um cigarro pendurado na boca. Mas ele se esquece de tragar. Os olhos carregam um brilho misto de ansiedade, expectativa e medo. O homem procura por algo. Desde que se dá por gente. Viu a neblina pela janela e achou que, se havia no mundo algo perdido esperando por ser encontrado, seria numa neblina como aquela.

quarta-feira, 14 de março de 2012

A Arte não ama Escobar, capítulo 1/7

Dedicado a Ana Julia

Escobar era um rapaz que vivia no campo e que alimentava dentro de si um desejo incontrolável: ser um artista. Fazer todos os tipos de arte. Esse desejo queimava-o por dentro desde que um dia, com oito anos, em visita a um primo da cidade grande, visitou um Museu de Belas-Artes e depois foi ao cinema, ver um filme de Charles Chaplin. Escobar era uma pessoa antes daquele dia e outra totalmente diferente no dia seguinte. Seus olhos haviam perdido o foco. Assim como a sua mente: nunca mais prestou atenção completamente em nada. Devaneava o dia inteiro, perdendo-se em sonhos megalomaniacos. O desejo pela arte havia tomado conta de sua alma e de sua cabeça, mas ninguém sabia, pois Escobar não dividia seu segredo com ninguém. Sabia que ali, naqule cenário de província, não receberia encorajamentos: de fato, receberia o extremo oposto.
Não que tivesse muitas pessoas de confiança com quem dividir segredos, de qualquer jeito. O pai era decepcionado com o rapaz, pois queria um filho mais centrado na realidade. A mãe era supercuidadosa, pois acreditava que o filho tinha um desvio psíquico sério. E os amigos, bom, Escobar não os tinha. Ele não fazia esforço nenhum para interagir com os colegas e vizinhos, que via como seres inferiores. E os colegas e vizinhos não queriam saber do rapaz distante que permanecia indiferente durante as aula na escola. Os modos esquivos não mudavam o fato de que era bem-apessoado. Corpo esbelto, cabelos ruivos e lisos emoldurando o rosto, olhos negros como piche e e rosto bem moldado. Portanto, atraía a atenção das moças da vila, porém a maioria delas desistia de se interessar por ele rapidamente, ao se inteirar do seu jeito de ser. Uma moça mais romântica, chamada Ritinha, julgou positivos os modos arredios do moço, talvez por achar que representavam uma grande mente, talvez por pensar aquele era o jeito do rapaz de lidar com um coração bom. Talvez Ritinha fosse simplesmente tola. O fato é que ela chegou a se munir de coragem e declarou seus sentimentos para Escobar, numa situação que achou propícia: ao por-do-sol, numa pracinha, com um pequeno chafariz de pedra-sabão ao centro, banquinhos ao redor. Escobar primeiro pareceu sem fala, depois estendeu a mão para o rosto de Ritinha, acariciando-o levemente. "Fico feliz que tenha me dito isso, Ritinha" ele disse. Ela corou fortemente e acreditou piamente que ele iria se declarar para ela também, e eles casariam-se e seriam felizes para sempre, e que um dia ela poderia contar aos netos que se comprometera com o avô deles numa pracinha assim assim, com um chafariz assim assim, num pôr-do-sol assim. Mas só o que ela disse foi: "P-por-quê?" "Porquê", disse Escobar, retirando de um bolso um caderninho surrado e aparentemente muito usado, e abrindo-o numa das últimas páginas "estava precisando de inspiração. Precisava de um poema romântico e me inspirar nos romances dos outros não estava dando certo. Obrigado" ele disse, dando na moça um beijo na testa e virando as costas, deixando a pobre petrificada no meio da praça. No dia seguinte Ritinha foi estudar num internato. Os pais da moça nunca mais olharam para Escobar e para sua família do mesmo jeito. O fato é que Escobar nem chegou a reparar na ausência da moça. Continuou levando a sua vida normalmente, esperando a hora certa de sair daquele lugar e começar a externar seu talento.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Redenção de Fumaça

     John chegou em frente á casa e checou o número. Sim, aquela era a casa. Subiu os degraus de pedra com cuidado: estavam cobertos de neve. Pisou no último degrau e encarou a porta de madeira escura. Sorriu: a porta estava cheia de enfeites de natal. Porém fez cara feia ao ver o próprio reflexo na janelinha de vidro. Tinha 27 anos, mas os sulcos em sua testa indicariam uma idade muito mais avançada. Suspirou e bateu na porta. Em pouco seu amigo David atendia: "John! Feliz natal! Fez boa viagem?"
     "Feliz natal pra voce tambem, Dave. Sim, a viagem foi tranquila. Muita neve, mas pelo menos o caminho é curtinho." e os dois amigos de infância se abraçaram. John entregou ao amigo sacolas com presentes para todos da familia.
     "Venha,"disse David, "Rebecca está na sala, falando com a mãe ao telefone. Becca, o David chegou."
     "Oi, tudo bem?" a moça loura e alta lhe perguntou com um sorriso burocrático, para depois continuar falando ao telefone.
     "Venha por aqui, John, deixe-me lhe mostrar o seu afilhado." Disse David, conduzindo John pelo corredor. Abriu lentamente a porta de um quarto semi-iluminado pelas luzes elétricas dos postes da rua que entravam pela janela parcialmente coberta de neve. Lá dentro, num berço, o bebê Peter, de um ano e meio dormia um sono sossegado. Os dois admiraram seu sono por um tempo, cada qual com seu sorriso besta, mas logo Rebecca bateu lentamente na porta para avisá-los que o peru estava pronto. Os dois desceram e se sentaram á mesa para cear. Depois de uma oração de agradecimento, o peru e os acompanhamentos foram servidos. Comeram conversando sobre trivialidades. Em certo ponto Rebecca se dirigiu a John e perguntou "John, você tinha uma casa de campo no sul, não tinha? É que eu e o David queríamos saber se poderíamos pegá-la emprestada por um fim-de-semana, quem sabe...". Um silêncio aterrador se apoderou da sala. John olhava fixamente para seu prato, como se tentasse se lembrar de alguma coisa. Rebecca esperava por sua resposta e David olhava para ela incrédulo. Não podia acreditar que ela se esquecera. "Becca..." ele começou, mas John foi mais rápido: "Na verdade a casa era do meu pai. Se passava por uma ponte sobre um rio caudaloso e por um caminho calçado de pedras e se chegava a ela. Era linda, dois andares, feita de madeira. Meu pai gostava de cultivar as flores nas janelas, para manter viva a lembrança de minha mãe. Infelizmente não vou poder emprestá-la a vocês. Um incêndio consumiu a casa e o terreno, um ano atrás." Durante toda a sua fala, John não ergueu os olhos e nenhuma emoção sobressaiu em seu rosto. Rebecca arregalou os olhos com a compreensão do que havia dito. Olhou para David em busca de orientação, e foi respondida com um olhar de repreensão severo. Não se falou mais naquele jantar. Quando todos haviam acabado, foram para a sala de estar, para tomar um vinho e conversar um pouco antes de dormir. Antes disso John foi ao banheiro e lavou o rosto. Saiu do banheiro e andou pelo corredor escuro respirando fundo e se sentindo melhor. Porém, ao entrar na sala de estar, onde os donos da casa conversavam, não conseguiu passar da porta. Havia uma lareira acesa. John arregalou os olhos e hiperventilou. Seus olhos escureceram e ele desmaiou.
     "John! John, voce está bem?" David estava ajoelhado ao seu lado, lhe dando tapinhas no rosto. Atrás dele Rebecca olhava para ele apreensiva.
     "Hm, sim, sim, estou agora. Não sei, devo ter comido demais. Talvez eu precise respirar um pouco.
     "Tem certeza que está bem? Podemos lhe levar num pronto socorro, se quiser" Rebecca parecia agora genuinamente preocupada.
     "Não, estou bem, sério. Vou, hã, vou dar uma volta, espairecer, mas não demoro. Podem começar sem mim." John já estava de pé, pegando seu casaco no cabide ao lado da porta. "Sério, eu não demoro." ele disse, passando pela porta e fechando-na atrás de si.
     Se virou e encarou a rua escura. Desceu as escadas e começou a andar sem rumo. Não havia quase ninguém nas ruas. Quase todos estavam em suas casas, comemorando o Natal. Havia sido um erro vir. Não queria estragar o natal daquela família. Um homem passou por ele e tirou o cigarro da boca para lhe desejar boa noite, soprando fumaça em seu rosto, e a fumaça entrou em suas narinas, lembrando-lhe do cheiro de trigo queimando. Ele cambaleou e se segurou num poste. Segurou o poste com as duas mãos e apoiou a testa contra ele, para colocar a cabeça no lugar. Tentou interromper a torrente de lembranças, mas era tarde.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Penitência

Drake estava enrolado dentro de sua caverna, no alto da montanha, esperando que a sombra da estalagmite atingisse o ponto marcado na parede de pedra. Fiapos de fumaça saíam de suas narinas. Ele sentia a impaciência queimando dentro dele. Mais dois centímetros. Mais um.
Um piscar de olhos e ele era um homem, subindo as escadas de mármore do Museu de História. Não tinha mais escamas, e sim pele. Tinha duas pernas e dois braços, cabeça, tronco, dedos. A sensação tão familiar nunca deixava de ser aliviante. Ele se apressou. Pessoas tinham saido no intervalo da peça do museu e fumavam nas escadas: o ar noturno pesava de umidade, da chuva que acabara ha pouco, e da fumaça do tabaco. Ele passou por elas de ombros abaixados e sem olhar nos olhos de ninguém, para não chamar atenção. Antes de empurrar as portas de vidro, olhou seu reflexo: estava um caco. Rosto empoeirado, cabelo desgrenhado, olhos marcados pelas noites maldormidas. Pra sua sorte, isso não importava. Abriu as portas e se viu frente a frente com seu irmão. Os dois se encararam. No olhar do irmão, apenas indiferença, enquanto nos olhos de Drake queimavam rancor e raiva contidos. O irmão de Drake saiu de seu caminho. Drake se dirigiu a exposição permanente, como fizera tantas outras vezes. Abriu as portas de vidro como sempre e, ao fechá-las atras de si, ordenou silenciosamente que as trancas se cerrasem. Isso nunca funcionara, mas o clique da fechadura às suas costas era sempre reconfortante. Respirou fundo e se virou. Sorriu ao ver a cascata de cabelos negros dela que, de costas para ele, admirava a pintura no final do corredor. Ela ouviu o clique, perguntou "É você, Drake?", e se virou. Não havia mais ninguem na galeria. Uma voz ecoou, antes por sua mente que pelo salão: "Só se você quiser. Se preferir, posso ser pássaro" e um pássaro voejou pelo teto. "Posso ser sssserpente" o passaro sumiu e uma cobra imensa, verde-esmeralda, serpenteou no chao, perto dela. A serpente passou por trás de uma coluna e sumiu. "Posso nao ser nada" falou uma voz atras dela. Ela se virou e não havia nada lá. Se virou de novo e lá estava ele. Ela se jogou nos seus bracos fortes e sussurou: "Pode ser meu?". Ele cerrou fortemente os olhos, respirou fundo e se separou dela, olhando em seus olhos. Reparou que ela usava o colar de pérolas, como sempre. Ele gostaria que ela o deixasse de lado, pelas lembranças, mas nao estragaria aquele raro momento com uma reclamação. "Mais dois meses", ele sussurou. "Só mais dois meses"e abraçou-na de novo.
As portas se abriram atrás deles. Drake rosnou, mas não se virou. Depois de incontáveis sábados como aquele, aprendera que cada segundo contava. Olhou uma última vez os olhos azuis de Lis, desejando poder se afogar neles, e ouviu a voz de seu irmão fazer o sempre fatídico anúncio. "Está na hora, Drake."

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Cemitérios de Londres




                Morte alcançou o topo da colina e vislumbrou a cidade se descortinando aos seus pés no exato momento em que o sol se escondia no mar, do lado oposto. Os lampiões de Londres brilhavam pouco, como se a cidade se preparasse para sua visita mensal. Desceu a estrada e entrou pela cidade murada, silencioso como a fumaça. Naturalmente, nenhum dos mortais que ainda restavam nas ruas podiam lhe ver, para a sorte deles, pois a visão de um homem alto, de capa, capuz e luvas negros, com uma máscara de ferro e uma foice de folha larga numa mão não seria a mais apreciada pelos bêbados renitentes. Porém alguns anjos que, em pé nos telhados, vigiavam os arredores das casas de seus protegidos, faziam cara de desprezo ao avistá-lo. Morte simplesmente virava a cara. Algumas vezes um humano acabava por lhe atravessar. Morte não sentia nada, mas o humano em questão era automaticamente acometido de uma vontade irresistível de voltar para casa. Virou uma esquina e entrou por uma rua larga, no fim da qual um cemitério esperava. Parou a frente do campo santo e bateu com a ponta do cabo da foice no chão uma vez. Em instantes alguns vultos esbranquiçados haviam atravessado as paredes brancas e o portão de ferro e se reunido ao redor dele. Morte não via nada se os olhasse de frente, porém, com os cantos dos olhos, se distinguiam suas formas e feições. A maioria trazia o olhar confuso dos novos mortos, porém alguns poucos miravam seu novo mestre com resignação. Se Morte os via ou não, não tinha importância. Sabia muito bem que os fantasmas estavam presos ás runas mais velhas que o tempo gravadas no cabo e na lâmina de sua foice, e que agora lhes pertenciam, quer quisessem, quer não, até o momento que os entregasse ás autoridades competentes. Alguns espíritos falavam sem se entender, e suas vozes soavam como neve caindo. Morte não se importou em prestar atenção.