quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Redenção de Fumaça

     John chegou em frente á casa e checou o número. Sim, aquela era a casa. Subiu os degraus de pedra com cuidado: estavam cobertos de neve. Pisou no último degrau e encarou a porta de madeira escura. Sorriu: a porta estava cheia de enfeites de natal. Porém fez cara feia ao ver o próprio reflexo na janelinha de vidro. Tinha 27 anos, mas os sulcos em sua testa indicariam uma idade muito mais avançada. Suspirou e bateu na porta. Em pouco seu amigo David atendia: "John! Feliz natal! Fez boa viagem?"
     "Feliz natal pra voce tambem, Dave. Sim, a viagem foi tranquila. Muita neve, mas pelo menos o caminho é curtinho." e os dois amigos de infância se abraçaram. John entregou ao amigo sacolas com presentes para todos da familia.
     "Venha,"disse David, "Rebecca está na sala, falando com a mãe ao telefone. Becca, o David chegou."
     "Oi, tudo bem?" a moça loura e alta lhe perguntou com um sorriso burocrático, para depois continuar falando ao telefone.
     "Venha por aqui, John, deixe-me lhe mostrar o seu afilhado." Disse David, conduzindo John pelo corredor. Abriu lentamente a porta de um quarto semi-iluminado pelas luzes elétricas dos postes da rua que entravam pela janela parcialmente coberta de neve. Lá dentro, num berço, o bebê Peter, de um ano e meio dormia um sono sossegado. Os dois admiraram seu sono por um tempo, cada qual com seu sorriso besta, mas logo Rebecca bateu lentamente na porta para avisá-los que o peru estava pronto. Os dois desceram e se sentaram á mesa para cear. Depois de uma oração de agradecimento, o peru e os acompanhamentos foram servidos. Comeram conversando sobre trivialidades. Em certo ponto Rebecca se dirigiu a John e perguntou "John, você tinha uma casa de campo no sul, não tinha? É que eu e o David queríamos saber se poderíamos pegá-la emprestada por um fim-de-semana, quem sabe...". Um silêncio aterrador se apoderou da sala. John olhava fixamente para seu prato, como se tentasse se lembrar de alguma coisa. Rebecca esperava por sua resposta e David olhava para ela incrédulo. Não podia acreditar que ela se esquecera. "Becca..." ele começou, mas John foi mais rápido: "Na verdade a casa era do meu pai. Se passava por uma ponte sobre um rio caudaloso e por um caminho calçado de pedras e se chegava a ela. Era linda, dois andares, feita de madeira. Meu pai gostava de cultivar as flores nas janelas, para manter viva a lembrança de minha mãe. Infelizmente não vou poder emprestá-la a vocês. Um incêndio consumiu a casa e o terreno, um ano atrás." Durante toda a sua fala, John não ergueu os olhos e nenhuma emoção sobressaiu em seu rosto. Rebecca arregalou os olhos com a compreensão do que havia dito. Olhou para David em busca de orientação, e foi respondida com um olhar de repreensão severo. Não se falou mais naquele jantar. Quando todos haviam acabado, foram para a sala de estar, para tomar um vinho e conversar um pouco antes de dormir. Antes disso John foi ao banheiro e lavou o rosto. Saiu do banheiro e andou pelo corredor escuro respirando fundo e se sentindo melhor. Porém, ao entrar na sala de estar, onde os donos da casa conversavam, não conseguiu passar da porta. Havia uma lareira acesa. John arregalou os olhos e hiperventilou. Seus olhos escureceram e ele desmaiou.
     "John! John, voce está bem?" David estava ajoelhado ao seu lado, lhe dando tapinhas no rosto. Atrás dele Rebecca olhava para ele apreensiva.
     "Hm, sim, sim, estou agora. Não sei, devo ter comido demais. Talvez eu precise respirar um pouco.
     "Tem certeza que está bem? Podemos lhe levar num pronto socorro, se quiser" Rebecca parecia agora genuinamente preocupada.
     "Não, estou bem, sério. Vou, hã, vou dar uma volta, espairecer, mas não demoro. Podem começar sem mim." John já estava de pé, pegando seu casaco no cabide ao lado da porta. "Sério, eu não demoro." ele disse, passando pela porta e fechando-na atrás de si.
     Se virou e encarou a rua escura. Desceu as escadas e começou a andar sem rumo. Não havia quase ninguém nas ruas. Quase todos estavam em suas casas, comemorando o Natal. Havia sido um erro vir. Não queria estragar o natal daquela família. Um homem passou por ele e tirou o cigarro da boca para lhe desejar boa noite, soprando fumaça em seu rosto, e a fumaça entrou em suas narinas, lembrando-lhe do cheiro de trigo queimando. Ele cambaleou e se segurou num poste. Segurou o poste com as duas mãos e apoiou a testa contra ele, para colocar a cabeça no lugar. Tentou interromper a torrente de lembranças, mas era tarde.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Penitência

Drake estava enrolado dentro de sua caverna, no alto da montanha, esperando que a sombra da estalagmite atingisse o ponto marcado na parede de pedra. Fiapos de fumaça saíam de suas narinas. Ele sentia a impaciência queimando dentro dele. Mais dois centímetros. Mais um.
Um piscar de olhos e ele era um homem, subindo as escadas de mármore do Museu de História. Não tinha mais escamas, e sim pele. Tinha duas pernas e dois braços, cabeça, tronco, dedos. A sensação tão familiar nunca deixava de ser aliviante. Ele se apressou. Pessoas tinham saido no intervalo da peça do museu e fumavam nas escadas: o ar noturno pesava de umidade, da chuva que acabara ha pouco, e da fumaça do tabaco. Ele passou por elas de ombros abaixados e sem olhar nos olhos de ninguém, para não chamar atenção. Antes de empurrar as portas de vidro, olhou seu reflexo: estava um caco. Rosto empoeirado, cabelo desgrenhado, olhos marcados pelas noites maldormidas. Pra sua sorte, isso não importava. Abriu as portas e se viu frente a frente com seu irmão. Os dois se encararam. No olhar do irmão, apenas indiferença, enquanto nos olhos de Drake queimavam rancor e raiva contidos. O irmão de Drake saiu de seu caminho. Drake se dirigiu a exposição permanente, como fizera tantas outras vezes. Abriu as portas de vidro como sempre e, ao fechá-las atras de si, ordenou silenciosamente que as trancas se cerrasem. Isso nunca funcionara, mas o clique da fechadura às suas costas era sempre reconfortante. Respirou fundo e se virou. Sorriu ao ver a cascata de cabelos negros dela que, de costas para ele, admirava a pintura no final do corredor. Ela ouviu o clique, perguntou "É você, Drake?", e se virou. Não havia mais ninguem na galeria. Uma voz ecoou, antes por sua mente que pelo salão: "Só se você quiser. Se preferir, posso ser pássaro" e um pássaro voejou pelo teto. "Posso ser sssserpente" o passaro sumiu e uma cobra imensa, verde-esmeralda, serpenteou no chao, perto dela. A serpente passou por trás de uma coluna e sumiu. "Posso nao ser nada" falou uma voz atras dela. Ela se virou e não havia nada lá. Se virou de novo e lá estava ele. Ela se jogou nos seus bracos fortes e sussurou: "Pode ser meu?". Ele cerrou fortemente os olhos, respirou fundo e se separou dela, olhando em seus olhos. Reparou que ela usava o colar de pérolas, como sempre. Ele gostaria que ela o deixasse de lado, pelas lembranças, mas nao estragaria aquele raro momento com uma reclamação. "Mais dois meses", ele sussurou. "Só mais dois meses"e abraçou-na de novo.
As portas se abriram atrás deles. Drake rosnou, mas não se virou. Depois de incontáveis sábados como aquele, aprendera que cada segundo contava. Olhou uma última vez os olhos azuis de Lis, desejando poder se afogar neles, e ouviu a voz de seu irmão fazer o sempre fatídico anúncio. "Está na hora, Drake."

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Cemitérios de Londres




                Morte alcançou o topo da colina e vislumbrou a cidade se descortinando aos seus pés no exato momento em que o sol se escondia no mar, do lado oposto. Os lampiões de Londres brilhavam pouco, como se a cidade se preparasse para sua visita mensal. Desceu a estrada e entrou pela cidade murada, silencioso como a fumaça. Naturalmente, nenhum dos mortais que ainda restavam nas ruas podiam lhe ver, para a sorte deles, pois a visão de um homem alto, de capa, capuz e luvas negros, com uma máscara de ferro e uma foice de folha larga numa mão não seria a mais apreciada pelos bêbados renitentes. Porém alguns anjos que, em pé nos telhados, vigiavam os arredores das casas de seus protegidos, faziam cara de desprezo ao avistá-lo. Morte simplesmente virava a cara. Algumas vezes um humano acabava por lhe atravessar. Morte não sentia nada, mas o humano em questão era automaticamente acometido de uma vontade irresistível de voltar para casa. Virou uma esquina e entrou por uma rua larga, no fim da qual um cemitério esperava. Parou a frente do campo santo e bateu com a ponta do cabo da foice no chão uma vez. Em instantes alguns vultos esbranquiçados haviam atravessado as paredes brancas e o portão de ferro e se reunido ao redor dele. Morte não via nada se os olhasse de frente, porém, com os cantos dos olhos, se distinguiam suas formas e feições. A maioria trazia o olhar confuso dos novos mortos, porém alguns poucos miravam seu novo mestre com resignação. Se Morte os via ou não, não tinha importância. Sabia muito bem que os fantasmas estavam presos ás runas mais velhas que o tempo gravadas no cabo e na lâmina de sua foice, e que agora lhes pertenciam, quer quisessem, quer não, até o momento que os entregasse ás autoridades competentes. Alguns espíritos falavam sem se entender, e suas vozes soavam como neve caindo. Morte não se importou em prestar atenção.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Luzes de Natal.



Dave virou enfim a esquina da Rua Oxford, depois de algum tempo de caminhada. Parou e contemplou a rua. Casas antigas e muito parecidas entre si a ladeavam, intocadas pelo tempo. A rua em si era estreita e estava coberta por um tapete de neve do dia anterior: naquele dia ainda não havia nevado. Postes de ferro estavam nos mesmos locais nos quais haviam sido instalados há tantos anos, porém as luzes que lançavam seus raios com dificuldade através dos finos e congelados vidros não eram provenientes de chamas, como originalmente, mas sim de lâmpadas elétricas. A rua terminava numa praia, uma faixa estreita de areia, seguida do mar, escuro e calmo. Dave ficou impressionado com a quantidade de histórias ás quais aquele estreito pedaço de terra calçada poderia ter servido de cenário.
Será que a minha história ainda pode ser mudada, ou será tarde demais? pensou para si.

domingo, 31 de julho de 2011

Fugaz Felicidade.

Lá estão Henry e Katherine, sentados de braços dados num tronco em volta da fogueira. Na casa, algumas das luzes ainda estão acesas, e os pais dos dois conversam animadamente na sala. Eles podem ouvir as vozes. Henry contempla Katherine ao seu lado, admira o jeito como a luz da fogueira reluz em seus cabelos e olha em seus olhos com aquele olhar que ela já conhecia. "Aqui não", ela murmura, "Eles podem nos ver pela janela." Os dois se levantam e se dirigem ao campo aberto. A mãe de Katherine percebe esse movimento pela janela, como a moça esperta previra, e lhe chama: "Katherine? Henry? Onde vocês vão?"
"Está tudo bem, mamãe, queremos apenas contemplar as estrelas e a luz da fogueira não permite."
"Antes, a luz da fogueira permite que vejamo-nos, não é?" A vivida senhora pensa, porém replica apenas: "OK, mas não se afastem muito e nem entrem na mata virgem!"

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Dos arbustos, a criatura espreita o grande brilho dentre a escuridão. Odiava o grande brilho. Todos os grandes brilhos têm dentro de si o Brilho que lhe apetece, porém ele não consegue distingui-lo do brilho que queima. A criatura suspira, pensando em quantas vezes queimara sua longa língua quando filhote, atacando indiscriminadamente qualquer grande brilho que visse pela frente. Um movimento junto ao grande brilho lhe atrai a atenção. Dois Brilhos, do tipo mais pulsante, se destacam do grande brilho e se movimentam em sua direção, e ele agradece à floresta pela graça, preparando suas articulações para o bote e começando a seguir os brilhos.

sábado, 14 de maio de 2011

O Gatilho

    A campainha tocou. Marcos foi atendê-la, transtornado. Recebeu o homem alto que batia, identificou-o como o hipnotizador com quem falara mais cedo e pediu-lhe que entrasse.
     "Ele está lá em cima. Não falou uma palavra desde o acidente."
     O homem assentiu, sombrio. Marcos o levou para cima. No caminho passaram pela entrada da cozinha, pela qual puderam ver um mulher sentada á mesa, a face enterrada nas mãos, parada como que petrificada. Se essa visão surtiu algum efeito no homem alto, ele não o demonstrou. Subiram as escadas e Marcos introduziu o homem a um quarto. Neste a luz estava apagada e um menininho de dez anos olhava a chuva, os ombros caídos. Um relâmpago passou pela janela e o trovão ribombou pelo quarto, mas o menino nem piscou.
    "Carlos" chamou Marcos "Você tem visita."
    O menininho virou sua cabeça lentamente para a porta. "Quem é?" Ele disse, numa voz que era um fiapo que arranhava por uma garganta tornada áspera, algumas horas atrás, por um pranto desesperado. Seus olhos muito pretos quase não brilhavam.
     "Um amigo" o homem alto disse, arrastando uma cadeira para a frente do menino e puxando um pêndulo do bolso do casaco.

sábado, 26 de março de 2011

Um sinal de transtorno em Amsterdã

ATENÇÃO-As músicas separam o texto em três "capítulos", que foram inspirados justamente nelas. Portanto, ouvi-las enquanto lê-los deve lhe oferecer uma experiência mais completa.


Um avião cruzava o céu noturno. Lá dentro, a jovem jornalista Violet tentava se distrair com as músicas de seu MP3 Player, enquanto olhava pela janela. O brilho de determinada estrela pareceu aumentar enquanto ela olhava para ela. A aeromoça perguntou algo, e ela desviou seu olhar. Ao voltá-lo para a estrela o seu brilho diminuía, até que, diante dos seus olhos, ela sumiu. Perguntou-se se estaria ficando louca, se seria apenas um reflexo de alguma luz lá debaixo, ou se alguém mais havia visto o que ela vira.

Alguém mais vira. Um rapaz, sentado no capô de seu carro, olhava o céu distraído. Uma estrela se apagara diante de seus olhos e ele não estava nem aí. Pra ele, todas as estrelas haviam se apagado quando ela decidira morar no exterior.