domingo, 3 de fevereiro de 2013

Última chance.

Roberto viu o sol se por na estrada à sua frente, enquanto acelerava rumo ao horizonte. Dali a pouco viu luzes à beira da rodovia. Uma pousadinha o esperava. "Pousada Última Chance", dizia o letreiro por debaixo do qual passou pra entrar no estacionamento, com uma pequena placa logo abaixo onde se lia "Não há vagas". "Perfeito" pensou, coçando a barba por fazer. "Uma noite no carro antes de encarar o desconhecido". Saiu do automóvel e viu, à luz tênue do crepúsculo, que na estrada, logo depois da entrada da pousada, estava a costumeira placa bicolor que indicava a divisa de país. Tirou os óculos do rosto e limpou-os para ler. Na parte de cima lia-se o nome de sua pátria, em fundo verde, e abaixo, na parte amarela, onde deveria estar o nome do país vizinho, não havia letra alguma. Passada a placa, era como se uma entidade superior houvesse traçado uma linha reta entre as nações. Do lado de cá, grama baixa e seca devido à estação. Do lado de lá, um chão escuro, de material indistinguível, e coisa alguma à vista até o horizonte. Roberto teve um súbito arrepio, uma hesitação momentânea, logo suplantada pelo cansaço e pela obstinação. Dirigiu-se à porta da estalagem.



     Lá dentro, o cenário usual de uma pousada de beira de estrada. A televisão fazia barulho no canto de uma saleta com alguns sofás aparentemente desconfortáveis e uma mesinha de centro com meia dúzia de revistas de decoração. Um cheiro curioso preenchia o ar. Do outro lado da sala ficava um bar, onde Roberto foi se sentar. O estalajadeiro, um homem baixinho com um bigode admirável, veio anotar seu pedido e Roberto teve de se conter para não pedir uma xícara de café. "Você quer dormir, seu idiota" ele se repreendeu, enquanto pedia um chá de camomila. Enquanto o barman aquecia a água, olhava bem para o rosto de Roberto, que fitava as garrafas do outro lado do bar, perdido em pensamentos. "Você é aquele homem", disse o estalajadeiro de repente, tirando Roberto de seus devaneios. "O autor daquele romance". "Será que sou mesmo?" Roberto pensou pra si próprio antes de confirmar com a cabeça. "Você apareceu ali" disse o homem, indicando a TV. "Há mais ou menos um mês". Roberto confirmou com a cabeça novamente, consciente e conformado com o fato de estar mais taciturno que o costume. Realmente haviam feito um senhor barulho quando ele finalmente assinara com a editora novamente. A expectativa havia crescido a níveis alarmantes no mundo durante o mês anterior, enquanto dentro de casa Roberto se afogava em café e tentava espremer algo decente pra fora da própria cabeça. Até que se cansou, encheu o tanque de gasolina e partiu na direção da país imapeável com que sonhara desde que era garoto. "Então, está indo pro outro lado da fronteira, é? Vai partir hoje?" perguntou o estalajadeiro, com um brilho estranho no olhar. "Não", murmurou Roberto, "Vou dormir no carro". "Ora, mas um carro pode ser extremamente desconfortável! Dormir nessas condições não pode fazer bem à sua cabeça" replicou o estalajadeiro, num tom desafiador. "O que se há de fazer?" respondeu Roberto, desconcertado com a reação do homem. "Vocês não têm vagas!". "Aí é que você se engana. Temos aqui um hóspede de longa data, praticamente um residente, que ocupa sozinho um quarto duplo. Ele certamente não se oporia a lhe receber". "E o que é que me diferencia de qualquer outra alma que entra nesse lugar???". "Cabeças como a sua, amigo. Elas abrem portas." disse o homem em tom profético, já dando a volta no balcão, num passo lento e mancando. "Siga-me" ele prosseguiu, entrando pelo corredor. Roberto encarou por um instante aquela figura insolente, embasbacado. Então vislumbrou seu carro no estacionamento. Lembrou-se que não levava malas, encolheu os ombros e foi atrás do homem, pensando que qualquer cama seria melhor que o banco de seu Escort 88. 
     Dentro do corredor da estalagem, o cheiro curioso era ainda mais presente. Era curioso por ser  indefinivel. Roberto não sabia se era doce ou amargo, forte ou suave, nem mesmo conseguia dizer se era agradável ou não. Mas aquele cheiro mexeu com ele. Reparou que a primeira porta estava aberta, mas o homem passou por ela. Roberto sabia que era errado, mas mesmo assim olhou pra dentro do quarto. Quase caiu pra trás com o que viu.
     Sentados a uma mesa, dois macacos, um centauro e um goblin verruguento jogavam cartas. O centauro baixou sua mão e os macacos berraram e esmurraram a mesa, claramente descontentes. Roberto se apoiou na parede atrás de si e esfregou os olhos, depois bateu na própria cabeça, mas a imagem não sumiu. Olhou incrédulo para o estalajadeiro, que prosseguia sua marcha rumo ao fim do corredor. Não havia como o homem não estar ouvindo os berros dos primatas, porém sua fisionomia não havia se alterado um mínimo que fosse. De repente a cena piscou e sumiu diante dos seus olhos, deixando pra trás um quarto aparentemente vazio. Roberto se afastou da porta, com medo de estar ficando maluco de vez. 
     Passaram pela segunda porta e o escritor arriscou uma olhada pra dentro. Ali, uma paisagem paradisíaca, dessas que você pensa que só verá em pinturas inspiradas, se descortinava rumo ao horizonte. Um jovem cervo bebia da água de uma rio que descia de uma cascata. Na campina, um pavão cortejava uma fêmea. Dançava, abria seu leque e fazia pequenos vôs rasantes. Não havia sinal das paredes do quarto. Acima, um céu de alvorada róseo, com direito a revoada de pássaros multicoloridos. Nada de teto. Então, de novo, a cena se desfez, derreteu, como se fosse esculpida em cera e tivesse sido deixada ao sol. 
     Roberto prosseguiu, tentando manter seus passos no ritmo do homem e a cabeça sob controle. A cada passo, se tornava mais e mais consciente do cheiro inquietante. A próxima porta lhe revelou uma caverna que parecia subterrânea. O som de seus passos pareceu acordar algo que rugiu. Roberto pensou que fosse um urso, porém ficou chocado ao ver um sem-número de ursos, um ciclope e uma criatura claramente alienígena galoparem pra fora da caverna, fugindo do rugido. Se afastou da porta apressado, pensando até onde o medo daquele ser levaria os ursos aterrorrizados.
     Quando chegaram ao fim do corredor, Roberto só duvidava que ainda duvidaria de alguma coisa. Havia visto toda uma galáxia ocupar o espaço de um quarto de casal, havia visto uma nuvem de gafanhotos tomar a forma de um homem, de um vulcão em erupção e de uma ninfa provocante, pra depois sumir, havia visto uma conferência entre homens e ouriços que fumavam charuto para dividir o terreno advindo da terraplanagem de uma floresta, enquanto as árvores revoltadas bradavam ao fundo. Porém, ao chegar ao quarto que o homem lhe indicava emoluar pro seu interior, incapaz sequer de tentar adivinhar o que lhe esperaria, não viu nada, além de um quarto comum de solteiro de hotel, com uma cama bem arrumada. Mas reparou que ali o cheiro era mais presente que nunca. "Ué, onde está o inquilino?" ele perguntou. "Ele devia pensar em mudar de colônia, o cheiro dessa é muito esquisito." mas o estalajadeiro não lhe respondeu nada, olhava pra dentro do quarto. Ele também olhou. De repente, algo mudou. Foi um movimento conjunto entre os sentidos e o cérebro. Ele pensou ter visto algo se mover dentro do quarto, com o canto do olho, enquanto uma brisa fresca levou uma lufada sufocante do cheiro às suas narinas, e soprou uma música ao mesmo tempo ancestral e moderna aos seus ouvidos. Naquele momento, sentiu a maior epifania de sua vida, como se algo há muito adormecido em seu cérebro houvesse acordado, e então dentro do quarto haviam macacos jogadores de carteado, haviam pavões, haviam ursos e ciclopes, havia uma galáxia, gafanhotos transmorfos e ouriços contraventores, e infinitas outras coisas, tudo ao mesmo tempo. Roberto olhou para aquilo com a sofreguidão de um bebê que mama pela primeira vez em sua mãe, paralisado por algum tempo. Então entrou no quarto sem nem acertar a diária com o estalajadeiro, que sorriu, fechou a porta e voltou pro seu balcão. "Todos eles falam do cheiro", ele resmungou. "Quem me dera, quem me dera um dia, por um momento que fosse, sentir esse cheiro..."
     Não seria correto dizer que Roberto acordou no dia seguinte. Mas certo seria dizer-se que ele despertou. O espetáculo de luzes continuava ao seu redor, mas, ele sabia, o seguiria pra sempre, onde quer que fosse. Acertou as contas com o balconista, entrou no seu Escort e cantou pneus de volta pra onde viera, sem sequer olhar para trás, para o país antes tão cobiçado. O estalajadeiro fitou o rastro de fumaça sumir no horizonte pela janela por cima da pia da cozinha e desejou poder viver no mesmo país que aquele homem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário