domingo, 29 de abril de 2012

Pipoca.

O pipoqueiro está em sua esquina de costume, apoiado em seu carrinho, sorrindo ao observar as brincadeiras das crianças na praça. Um homem cabisbaixo se aproxima, levantando seu olhar rapidamente para direcioná-lo ao pipoqueiro, para pedir um saco de pipoca doce. Naquele relance, o pipoqueiro compreende. Enquanto enche um saquinho de papel com pipoca doce, sente um calor passar de sua mão para a colher de pipoca. Ele não toca na própria mercadoria (é um profissional), mas, se tocasse, provavelmente sentiria nos flocos brancos um calor curioso, diferente daquele providenciado pelo fogo.. O estranho pega o saco, paga e se afasta, petiscando a guloseima sem muita vontade.
Antes que ande até a esquina, seu celular toca. Ele olha para o visor atônito, sem acreditar no nome que lê. Então atende, gaguejante:
"A-alô? Oi, amor! Quê! Se eu te desculpo? Falou sem pensar? Confia em mim agora? Claro que eu te aceito de volta, meu amor! Esse é o dia mais feliz da minha vida! Sim, estou aqui perto, estou indo praí." E sai correndo, o saquinho esquecido na mão espalhando seu conteúdo pelo chão, pra alegria dos pombos da cidade.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Poderia ser você.

Uma rua tomada pela neblina, mal-iluminada por postes de luz elétrica. Debaixo de um desses aguarda um homem, que olha pros lados como quem espera que algo aconteça. Enverga um longo casaco e tem as mãos nos bolsos. Um cigarro pendurado na boca. Mas ele se esquece de tragar. Os olhos carregam um brilho misto de ansiedade, expectativa e medo. O homem procura por algo. Desde que se dá por gente. Viu a neblina pela janela e achou que, se havia no mundo algo perdido esperando por ser encontrado, seria numa neblina como aquela.

quarta-feira, 14 de março de 2012

A Arte não ama Escobar, capítulo 1/7

Dedicado a Ana Julia

Escobar era um rapaz que vivia no campo e que alimentava dentro de si um desejo incontrolável: ser um artista. Fazer todos os tipos de arte. Esse desejo queimava-o por dentro desde que um dia, com oito anos, em visita a um primo da cidade grande, visitou um Museu de Belas-Artes e depois foi ao cinema, ver um filme de Charles Chaplin. Escobar era uma pessoa antes daquele dia e outra totalmente diferente no dia seguinte. Seus olhos haviam perdido o foco. Assim como a sua mente: nunca mais prestou atenção completamente em nada. Devaneava o dia inteiro, perdendo-se em sonhos megalomaniacos. O desejo pela arte havia tomado conta de sua alma e de sua cabeça, mas ninguém sabia, pois Escobar não dividia seu segredo com ninguém. Sabia que ali, naqule cenário de província, não receberia encorajamentos: de fato, receberia o extremo oposto.
Não que tivesse muitas pessoas de confiança com quem dividir segredos, de qualquer jeito. O pai era decepcionado com o rapaz, pois queria um filho mais centrado na realidade. A mãe era supercuidadosa, pois acreditava que o filho tinha um desvio psíquico sério. E os amigos, bom, Escobar não os tinha. Ele não fazia esforço nenhum para interagir com os colegas e vizinhos, que via como seres inferiores. E os colegas e vizinhos não queriam saber do rapaz distante que permanecia indiferente durante as aula na escola. Os modos esquivos não mudavam o fato de que era bem-apessoado. Corpo esbelto, cabelos ruivos e lisos emoldurando o rosto, olhos negros como piche e e rosto bem moldado. Portanto, atraía a atenção das moças da vila, porém a maioria delas desistia de se interessar por ele rapidamente, ao se inteirar do seu jeito de ser. Uma moça mais romântica, chamada Ritinha, julgou positivos os modos arredios do moço, talvez por achar que representavam uma grande mente, talvez por pensar aquele era o jeito do rapaz de lidar com um coração bom. Talvez Ritinha fosse simplesmente tola. O fato é que ela chegou a se munir de coragem e declarou seus sentimentos para Escobar, numa situação que achou propícia: ao por-do-sol, numa pracinha, com um pequeno chafariz de pedra-sabão ao centro, banquinhos ao redor. Escobar primeiro pareceu sem fala, depois estendeu a mão para o rosto de Ritinha, acariciando-o levemente. "Fico feliz que tenha me dito isso, Ritinha" ele disse. Ela corou fortemente e acreditou piamente que ele iria se declarar para ela também, e eles casariam-se e seriam felizes para sempre, e que um dia ela poderia contar aos netos que se comprometera com o avô deles numa pracinha assim assim, com um chafariz assim assim, num pôr-do-sol assim. Mas só o que ela disse foi: "P-por-quê?" "Porquê", disse Escobar, retirando de um bolso um caderninho surrado e aparentemente muito usado, e abrindo-o numa das últimas páginas "estava precisando de inspiração. Precisava de um poema romântico e me inspirar nos romances dos outros não estava dando certo. Obrigado" ele disse, dando na moça um beijo na testa e virando as costas, deixando a pobre petrificada no meio da praça. No dia seguinte Ritinha foi estudar num internato. Os pais da moça nunca mais olharam para Escobar e para sua família do mesmo jeito. O fato é que Escobar nem chegou a reparar na ausência da moça. Continuou levando a sua vida normalmente, esperando a hora certa de sair daquele lugar e começar a externar seu talento.