sábado, 17 de dezembro de 2011

Penitência

Drake estava enrolado dentro de sua caverna, no alto da montanha, esperando que a sombra da estalagmite atingisse o ponto marcado na parede de pedra. Fiapos de fumaça saíam de suas narinas. Ele sentia a impaciência queimando dentro dele. Mais dois centímetros. Mais um.
Um piscar de olhos e ele era um homem, subindo as escadas de mármore do Museu de História. Não tinha mais escamas, e sim pele. Tinha duas pernas e dois braços, cabeça, tronco, dedos. A sensação tão familiar nunca deixava de ser aliviante. Ele se apressou. Pessoas tinham saido no intervalo da peça do museu e fumavam nas escadas: o ar noturno pesava de umidade, da chuva que acabara ha pouco, e da fumaça do tabaco. Ele passou por elas de ombros abaixados e sem olhar nos olhos de ninguém, para não chamar atenção. Antes de empurrar as portas de vidro, olhou seu reflexo: estava um caco. Rosto empoeirado, cabelo desgrenhado, olhos marcados pelas noites maldormidas. Pra sua sorte, isso não importava. Abriu as portas e se viu frente a frente com seu irmão. Os dois se encararam. No olhar do irmão, apenas indiferença, enquanto nos olhos de Drake queimavam rancor e raiva contidos. O irmão de Drake saiu de seu caminho. Drake se dirigiu a exposição permanente, como fizera tantas outras vezes. Abriu as portas de vidro como sempre e, ao fechá-las atras de si, ordenou silenciosamente que as trancas se cerrasem. Isso nunca funcionara, mas o clique da fechadura às suas costas era sempre reconfortante. Respirou fundo e se virou. Sorriu ao ver a cascata de cabelos negros dela que, de costas para ele, admirava a pintura no final do corredor. Ela ouviu o clique, perguntou "É você, Drake?", e se virou. Não havia mais ninguem na galeria. Uma voz ecoou, antes por sua mente que pelo salão: "Só se você quiser. Se preferir, posso ser pássaro" e um pássaro voejou pelo teto. "Posso ser sssserpente" o passaro sumiu e uma cobra imensa, verde-esmeralda, serpenteou no chao, perto dela. A serpente passou por trás de uma coluna e sumiu. "Posso nao ser nada" falou uma voz atras dela. Ela se virou e não havia nada lá. Se virou de novo e lá estava ele. Ela se jogou nos seus bracos fortes e sussurou: "Pode ser meu?". Ele cerrou fortemente os olhos, respirou fundo e se separou dela, olhando em seus olhos. Reparou que ela usava o colar de pérolas, como sempre. Ele gostaria que ela o deixasse de lado, pelas lembranças, mas nao estragaria aquele raro momento com uma reclamação. "Mais dois meses", ele sussurou. "Só mais dois meses"e abraçou-na de novo.
As portas se abriram atrás deles. Drake rosnou, mas não se virou. Depois de incontáveis sábados como aquele, aprendera que cada segundo contava. Olhou uma última vez os olhos azuis de Lis, desejando poder se afogar neles, e ouviu a voz de seu irmão fazer o sempre fatídico anúncio. "Está na hora, Drake."



Um piscar de olhos e ele estava de volta no corpo monstruoso que o hospedara pelos últimos longos meses. Não deu recebeu bem as asas coriáceas ou as escamas, nem a cauda espigada. Pelo contrário, o pesar o atingiu como um soco no estômago, fazendo com que ele cambaleasse, sem equilíbrio, perto da abertura da caverna. Perto demais. A luz do sol atingiu seus olhos e ele tropeçou: num instante estava caindo. Visualizou as montanhas áridas que abrigavam sua caverna em seu percurso rumo ao chao. Sabia que, mesmo naquele corpo de dragão, seus ossos não resistiriam a uma queda daquelas. Sabia também que podia abrir as asas e retornar à caverna: não se importava. A dor era só o que ocupava seu cerebro. Em momentos seria só pó de ossos e escamas no chão do desfiladeiro. Rei ficaria satisfeito, seu irmão não se importaria, ele nunca se importara de qualquer jeito, e Lis estaria livre para ser feliz em seu mundo, com gente como ela. Fixou em sua mente a imagem do sorriso dela: partir assim com certeza doeria menos. Mas não teve a oportunidade: sentiu a queda ser interrompida por uma influência mágica que conhecia bem. Em segundos seu irmão flutuava a seu lado, sentado de pernas cruzadas no ar, o babaca pretensioso.
"Desculpe, Drake, mas não posso te deixar fazer isso. Por maior que seja a minha vontade"
"Sempre cumprindo seu dever, não é?" suspenso no ar, Drake tentou alcançar seu irmão com uma garra, num movimento violento. Atingiu uma barreira invisível, como imaginava que atingiria. Ainda assim, o ataque descarregou um pouco de sua raiva.
Seu irmão suspirou e começou a ascender com ele, rumo à boca da caverna "Bem, Drake, eu posso dormir na minha propria cama na Guilda, ao invés do chão de pedra de uma caverna nas montanhas do Deserto. Então, sim, estou sempre cumprindo meu dever. Voce acha que eu gosto disso, não é? Acha que eu gosto de ter que vir checar se você está vivo toda manhã, garantir que você se alimente, só para garantir á Sua Majestade que sua pena será completamente cumprida? Eu poderia estar vendo o mundo, Drake, mas estou quase tão preso a essas pedras quanto você. Mas você está aqui por escolha própria, o que lhe dá uma vantagem."
"Vontade própria!" Drake se dignara a se libertar das amarras mágicas do irmão e voava pro topo por si próprio. "Quem foi que decidiu denunciar meu plano de fuga a Rei?"
"Era um plano estúpido, Drake. Rei saberia de qualquer jeito. Ainda mais se levássemos a garota humana. Hah! Pelo menos assim eu teria minha caverna própria por aqui, não é? Sua missão era tão simples, Drake. Um simples colar de pérolas. Mas não, o herói tinha que se apaixonar pela mocinha de outra dimensão! Voce é romântico demais, Drake. Isso nunca lhe deu vantagem nenhuma, mas você sempre foi assim. Essa é a diferença entre nós: eu sou prático. Uso a cabeça."
"Se você acha que ser romântico nao é vantagem nenhuma, sua cabeça é inútil, de tao oca." Drake chegara a sua caverna e se acomodava no chão duro para mais uma noite de vigília. "Quanto a garota humana, ela tem um nome. E depois de quase um ano, eu ainda nao me arrependo de nada.""
"Mas não é isso que você dirá daqui a dois meses, quando for levado á presença de sua majestade, certo?" o irmão perguntou entre dentes.
"Não. Vou abaixar as orelhas e me fazer de arrependido, como combinado."
"Ótimo. Já arranjei tudo com Rei e com nossos caros contatos. Depois que seu nome for tirado de você, um 'amigo' meu vai abrir um portal para você. Então será problema de outros. Livre para gastar o resto dos seus anos como quiser, naquele planetinha estéril." o irmão de Drake se encaminhara para a boca da caverna. "E por favor, nao tente se jogar de novo, certo? Eu levaria uma descompostura histórica de Rei e ainda seria obrigado a ir praquele planetinha desprezível contar as novas para a sua garota. Se ela soubesse que o homem por quem ela esperara por dez meses, mesmo sendo um homem como voce, virara pasta de dragao no fundo de um desfiladeiro, com certeza soltaria uma ou duas lágrimas, e voce sabe o que eu acho de gente chorosa."
Drake soltou uma rajada de chamas na direção da boca da caverna. Quando a poeira baixou, seu irmão já sumira. Acomodou a cabeça sobre as patas e encarou o céu que escurecia rapidamente. Só mais dois meses, e só mais sete dias para ver o rosto dela de novo. Ele aguentara até ali, dois meses a mais nao seriam nada. Riu da própria piada e fechou os olhos.

Em um lugar muito, muito distante, Lis sussurava, deixando cair uma lágrima solitária, as últimas falas de "Na selva das cidades", perfeitamente sincronizada com o ator em cena. Depois de dez meses daquilo, conhecia as falas tão bem quanto qualquer ator do elenco. Observou enquanto o ator principal anunciava que sairiam de cartaz em dois meses, depois de uma longa temporada de muito sucesso. Uma peça acabaria, e a peça de sua vida começaria, para sempre. A espera consumia Lis, de um jeito especialmente feliz.

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