quarta-feira, 14 de março de 2012

A Arte não ama Escobar, capítulo 1/7

Dedicado a Ana Julia

Escobar era um rapaz que vivia no campo e que alimentava dentro de si um desejo incontrolável: ser um artista. Fazer todos os tipos de arte. Esse desejo queimava-o por dentro desde que um dia, com oito anos, em visita a um primo da cidade grande, visitou um Museu de Belas-Artes e depois foi ao cinema, ver um filme de Charles Chaplin. Escobar era uma pessoa antes daquele dia e outra totalmente diferente no dia seguinte. Seus olhos haviam perdido o foco. Assim como a sua mente: nunca mais prestou atenção completamente em nada. Devaneava o dia inteiro, perdendo-se em sonhos megalomaniacos. O desejo pela arte havia tomado conta de sua alma e de sua cabeça, mas ninguém sabia, pois Escobar não dividia seu segredo com ninguém. Sabia que ali, naqule cenário de província, não receberia encorajamentos: de fato, receberia o extremo oposto.
Não que tivesse muitas pessoas de confiança com quem dividir segredos, de qualquer jeito. O pai era decepcionado com o rapaz, pois queria um filho mais centrado na realidade. A mãe era supercuidadosa, pois acreditava que o filho tinha um desvio psíquico sério. E os amigos, bom, Escobar não os tinha. Ele não fazia esforço nenhum para interagir com os colegas e vizinhos, que via como seres inferiores. E os colegas e vizinhos não queriam saber do rapaz distante que permanecia indiferente durante as aula na escola. Os modos esquivos não mudavam o fato de que era bem-apessoado. Corpo esbelto, cabelos ruivos e lisos emoldurando o rosto, olhos negros como piche e e rosto bem moldado. Portanto, atraía a atenção das moças da vila, porém a maioria delas desistia de se interessar por ele rapidamente, ao se inteirar do seu jeito de ser. Uma moça mais romântica, chamada Ritinha, julgou positivos os modos arredios do moço, talvez por achar que representavam uma grande mente, talvez por pensar aquele era o jeito do rapaz de lidar com um coração bom. Talvez Ritinha fosse simplesmente tola. O fato é que ela chegou a se munir de coragem e declarou seus sentimentos para Escobar, numa situação que achou propícia: ao por-do-sol, numa pracinha, com um pequeno chafariz de pedra-sabão ao centro, banquinhos ao redor. Escobar primeiro pareceu sem fala, depois estendeu a mão para o rosto de Ritinha, acariciando-o levemente. "Fico feliz que tenha me dito isso, Ritinha" ele disse. Ela corou fortemente e acreditou piamente que ele iria se declarar para ela também, e eles casariam-se e seriam felizes para sempre, e que um dia ela poderia contar aos netos que se comprometera com o avô deles numa pracinha assim assim, com um chafariz assim assim, num pôr-do-sol assim. Mas só o que ela disse foi: "P-por-quê?" "Porquê", disse Escobar, retirando de um bolso um caderninho surrado e aparentemente muito usado, e abrindo-o numa das últimas páginas "estava precisando de inspiração. Precisava de um poema romântico e me inspirar nos romances dos outros não estava dando certo. Obrigado" ele disse, dando na moça um beijo na testa e virando as costas, deixando a pobre petrificada no meio da praça. No dia seguinte Ritinha foi estudar num internato. Os pais da moça nunca mais olharam para Escobar e para sua família do mesmo jeito. O fato é que Escobar nem chegou a reparar na ausência da moça. Continuou levando a sua vida normalmente, esperando a hora certa de sair daquele lugar e começar a externar seu talento.
Enfim o dia chegou. Na manhã de seu aniversário de 18 anos, Escobar juntou suas posses mais preciosas numa mochila velha e se despediu de um pai resignado e de uma mãe desesperada. Pegou o primeiro ônibus rumo á cidade grande. Seu primo Rodrigo já o esperava na rodoviária. Rodrigo tinha 21 anos e trabalhava com fotografia num grande jornal. A primeira coisa que Escobar disse a ele assim que o viu foi "Onde tem uma editora por aqui?" Meio estarrecido, Rodrigo apontou para um lado, a esmo. Escobar agradeceu e partiu na direção apontada, deixando o primo lá plantado, com a mochila de Escobar na mão. 
Escobar seguiu as orientações recolhidas e adentrou um grande prédio branco. Era uma filial de uma editora internacional. Chegou e pediu para falar com quem contratava. Mandaram-lhe para o RH. Lá ele foi recebido por uma senhora velha, gorda, maquiada excessivamente, com um cigarro aceso na boca e outro na mão. Ela passou os olhos pelo caderno de anotações de Escobar, onde ele registrara crônicas, contos e poemas inspirados em sua vida no campo. Olhou Escobar de cima a baixo e bateu um carimbo na capa. que dizia em grossas letras vermelhas: "NEGADO." Mas a vontade do rapaz era de ferro. Perguntou á moça, pacientemente, se havia ali por perto alguma outra editora. Ela lhe respondeu que havia uma descendo a rua. Escobar desceu a rua e adentrou outro prédio moderno. Teve lá a mesma recepção que tivera na primeira editora. Novamente, pediu indicações quanto a outra editora nos arredores. Novamente lhe indicaram uma editora não muito longe.
Ele repetiu o processo muitas vezes, até que, de editora em editora, atravessou o centro da cidade a pé. O pôr-do-sol encontrou um Escobar suado batendo a porta de uma casa no alto de uma ladeira, na fachada da qual se liam, em letras pretas mal-pintadas e desgastadas: "Editora Pirapora". Um senhor gordo, muito gordo, despenteado, com uma camisa social rota meio aberta sobre o peito peludo e um bafo de álcool muito forte o atendeu. Escobar explicou sua situação ainda na porta e o homem lhe deixou entrar. O homem sentou-se na sua mesa, sobre a qual viam-se muitas revistas sobre negócios editoriais, e disse que Escobar se sentasse enquanto ele examinava sua obra. Não havia onde se sentar. De fato, o escritório do homem parecia se localizar na garagem da casa, a julgar pela mobília. Escobar então esperou de pé e viu o rosto do homem se tornar mais e mais interessado á medida em que virava as páginas. Depois de algum tempo o homem ergueu o rosto e perguntou, fitando o rapaz: "Foi você que escreveu isso aqui?" ante a resposta afirmativa, o homem se levantou e estendeu a mão a Escobar, dizendo: "Vamos fazer negócios." Escobar sacudiu vigorosamente a mão que lhe era estendida. "Volte amanhã para começarmos a acertar os detalhes, sim? Não, não" ele disse, quando Escobar tentou alcançar o caderno em suas mãos. "Preciso terminar de ler isso aqui. Para averiguar quanto iremos investir, você sabe. Volte amanhã." Escobar estava tão feliz que aceitou. Estava tão nas nuvens que só foi reparar que não sabia o caminho de casa quando chegou ao pé da ladeira. Mas pedindo uma orientação aqui e ali, chegou à casa do primo, depois de umas boas duas horas e meia. Rodrigo já estava desesperado, pensando que Escobar havia se perdido, pensando na reação que seus pais teriam ao saber, mas enquanto jogava suas preocupações na cara de Escobar, este foi na direção da janela e ficou lá, olhando o céu com cara de bobo. Rodrigo perguntou o que, afinal, acontecera e Escobar respondeu "Vou ser publicado" bem baixinho. Tanto que Rodrigo não entendeu, pedindo pro primo repetir. "Vou ser publicado!!!!" dessa vez Escobar gritou, tanto pro primo quanto pra janela e pro mundo. "O QUÊ???" perguntou o primo, pedindo pra saber a história toda.
Quando Escobar terminou de contar, Rodrigo revirou os olhos, enterrou o rosto nas mãos e perguntou a Escobar se ele estava louco. E disse que não devia ter deixado o livro na mão do homem. Que o homem poderia usar o conteúdo do livro pro que quisesse. Que ele tinha que ir lá na manhã seguinte bem cedo e recolher o livro. Escobar concordou, depois de tão eloquente explicação, e voltou ao topo da ladeira na manhã seguinte. Encontrou a porta trancada e a fachada sem placa. Chamou, bateu na porta, esmurrou-a. Nada de respostas. A vizinha do outro lado da rua veio ver que barulho era aquele e explicou que Escobar não teria sucesso, pois o menino dela vira o velho sair bem cedo de manhã, de terno, cabelo escovado e barba feita, carregando uma mala. Escobar soube ali que o profetizado pelo primo se concretizara. Voltou para casa arrasado. O primo entendeu o que se passara assim que viu a cara com a qual Escobar adentrou o apartamento, mas não houve chance para consolos, pois Escobar foi direto para o quarto de hóspedes, lá se trancando. Rodrigo ficou com medo que o primo atentasse contra a própria vida, mas Escobar saiu do quarto de hóspedes á noite, ao ouvir o barulho de talheres se chocando com louças produzidos por Rodrigo, que fazia seu lanche da noite. O fotógrafo tentou conversar com o artista, mas se Escobar escutava, não dava sinais. Seu rosto, porém, não exibia mais uma expressão desolada, mas uma de intenso pensamento, o que deu a Rodrigo uma esperança de que talvez seu primo se reerguesse. 
No dia seguinte Rodrigo acordou e não achou seu primo em casa. Havia, porém, um bilhete sobre a mesa que dizia "Saí pra resolver umas coisas. Pode me esperar para jantar, se quiser."

a segunda parte do conto será publicada no dia 22/03

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